A integração continental pelo narcotráfico

Argemiro Procópio*

* Doutor em Sociologia pela Universidade de Berlim, Professor Titular da Universidade de Brasília

O narcotráfico no mercosul

A contaminação da sociedade pelo narcotráfico nos centros urbanos de médio e pequeno porte em quase todos os países do Mercosul prova que as drogas não estão concentradas, como nos anos 1970 e 1980, nas capitais ou exclusivamente em cidades fronteiriças da Bolívia, do Paraguai, do Peru e da Colômbia. Nas cidades do interior, na maior parte dos casos, o preço dos narcóticos é substantivamente inferior e de melhor qualidade. Sabe-se que o grau de pureza da cocaína distribuída em espaços sociais transfronteiriços é maior do que daquela consumida em Buenos Aires, Rio de Janeiro ou Montevidéu. Tanto isso é verdade que, hoje, levas de dependentes residentes nos grandes centros abastecem-se nas cidades do interior, aproveitando-se de festividades religiosas, como Natal e Páscoa, entre outros.

No Mercosul as drogas transitam pelos rios, por terra, ar e mar. No caso do transporte marítimo, por exemplo, os armadores nacionais respondem por apenas pequena parte do movimento de carga do país. Essa reduzidíssima participação leva a crer que a quase totalidade do transporte intercontinental por mar, de drogas e produtos químicos empregados na fabricação de substâncias alucinógenas, entram e saem pela costa brasileira, chilena, uruguaia e argentina, quase que exclusivamente em embarcações estrangeiras. Por proposta da diplomacia dos governos da Argentina e Brasil, apresentada em Buenos Aires no mês de julho de 1998, navios de bandeira estrangeira navegarão livremente no Mercosul1 , o que tornará extremamente difícil a vigilância policial no combate ao narcotráfico nesse setor.

O Uruguai, que por aproximadamente duas décadas serviu de principal caminho de contrabando para saída do ouro brasileiro, é ponte de trânsito para os precursores químicos. Muitos de seus conceituados banqueiros, homens de negócios e políticos com discrição invejável, ajudam a camuflar a rota da entrada de químicos. A Suíça latino-americana é referência no processo de lavagem de dinheiro e, em passado recente, ponto de distribuição das disputadas anfetaminas européias para Argentina e Brasil.

É expressiva a passagem de traficantes por Punta del Este e Montevidéu. Da mesma forma que o narcotráfico beneficiou-se e beneficia-se com o fim do controle de cidadãos e mercadorias nas fronteiras dos quinze países membros da União Européia, também os traficantes lucraram com o processo de integração fomentado pelo Mercosul entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai.

O Paraguai durante aproximadamente vinte anos foi notório ponto de contrabando. Todavia, lá não se lava tanto dinheiro como no Uruguai. Ciudad del Este é centro abastecedor e de revenda de armas made in Brazil para os próprios traficantes brasileiros. Segundo levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisas de Estudos da Religião, a maior parte do mercado brasileiro de armas curtas é provido pela Forjas Taurus sediada no estado do Rio Grande do Sul. Exportadas as armas voltam ilegalmente para o Brasil. Isto joga por terra o mito de que o narcotraficante se abastece sobretudo com armas estrangeiras. Ainda segundo o trabalho do ISER, menos de 30% das armas apreendidas com o banditismo no Rio de Janeiro chegam do exterior.2 No Paraguai, a venda de pistolas automáticas a fuzis AR-15, M-16 e outros

igualmente sofisticados – é permitida. Por esta razão, não há impedimentos formais para que traficantes brasileiros possam comprá-las e enviá-las, utilizando aviões pequenos, ônibus de sacoleiros, ônibus de linha ou carros de passeio, que saem do Paraguai com destino ao Brasil.

A ressonância da crise asiática, russa, brasileira e argentina chegou e entrou portas adentro no Chile, membro orgulhoso do Fórum de Cooperação Ásia-Pacífico. A boa infra-estrutura comercial chilena, principalmente no comércio de frutas e peixe, tem sido excelente espaço para o narcotráfico. O fato da imagem do Chile, com a prisão do general Pinochet em Londres ter acabado tão arranhada como a do Brasil, da Colômbia, do Peru, da Bolívia e do Paraguai, entre outros, não alterou nem para melhor, nem para pior sua posição no comércio das drogas. Apenas a crise econômica mundial relativizou a decantada vantagem do Chile de fazer parte do mencionado Fórum de Cooperação arrefecendo o calor do seu namoro com os países asiáticos, onde o calado narcotráfico com antiga tradição é mais poderoso e dinâmico que na própria América Latina. Daí a razão do Chile ter silenciosamente abastecido Peru, Bolívia e Colômbia com produtos químicos controlados, de proveniência asiática, por anos a fio.

A hidrovia Paraguai-Paraná, de 1998 em diante, transformou-se em seguro escoadouro de produtos químicos destinados à transformação da coca boliviana. Enquanto a vigilância da DEA concentrou-se no espaço amazônico, o narcotráfico, espertamente, saltou para o sul do continente estabelecendo conexões no Norte e Centro-Oeste, com maleáveis e modernas bases no Mercosul. A seu serviço, para citar apenas as estradas mais conhecidas, estão a BR-364, BR-262 e BR-163.3

As centenas de barcaças graneleiras, a serviço do complexo agroalimentar mundial, cada uma delas transportando o equivalente a 50 caminhões semi-reboque, cheios de soja, milho, trigo ou café transubstanciaram-se em esconderijos ideais da contravenção.

Graças à hidrovia Paraguai-Paraná, com aproximadamente três mil quilômetros, o famoso porto de Buenos Aires e também Punta del Este, no Uruguai, passaram a ter novo destaque no narcotráfico, "aliviando" a carga de outros portos no subcontinente, até mesmo os de Santos e do Rio de Janeiro. Em matéria de transporte de produtos químicos controlados, essa hidrovia transfere para os países do Mercosul responsabilidades anteriormente exclusivas de países amazônicos como Colômbia, Venezuela, Peru, Equador e Bolívia.

O Paraguai, alma mater dessa hidrovia, escoa por aí um quarto dos seus grãos exportados, com predominância da soja, grande parte dela produzida pelos "brasilguaios" e outro tanto oriunda e contrabandeada do Brasil. Mais uma vez fica comprovada a tese da ligação do contrabando e evasão de riquezas com o comércio ilegal de drogas.

Brasil: o segundo maior consumidor de drogas

O contrabando de gemas é um dos braços mais fortes do narcotráfico no Brasil. Com a decadência das minas auríferas e dos garimpos de ouro, a evasão ilegal das pedras preciosas tomou o lugar ocupado pelo ouro no mundo dos negócio ilícitos. Não que o ouro tenha acabado: existem ainda centenas de garimpos. Apenas o país não detém a posição de ponta do passado. Na América do Sul, somos agora o segundo produtor, depois do Peru. O Brasil, de 1978 a 1988, ocupou o primeiro lugar mundial na produção de ouro para o contrabando. Transformou o Uruguai, que não tem nenhuma mina em seu território, no maior exportador da América Latina. Hoje, o Brasil perde para a África do Sul, para os Estados Unidos da América, para a Austrália, para a China, para a Rússia, para o Uzbequistão e para o Peru. As reservas são estimadas em 2.800 toneladas; 54% delas estão em Minas Gerais; 27% no Pará; 6% no Mato Grosso; 5% em Goiás; 4% na Bahia e 2% no Maranhão.4 As estatísticas oficiais aqui mencionadas, traduzindo o descaso das autoridades governamentais para com estas riquezas do país, sequer referem-se aos Estados do Tocantins, Amazonas, Roraima, Rondônia e Rio Grande do Sul onde o contrabando do ouro e de gemas caminha camufladamente com as drogas e químicos controlados.

A falta de rigor das leis e a ausência de vigor no combate à receptação transformaram o Brasil, na segunda metade dos anos 1990, também em um expressivo fabricante de drogas sintéticas. Envenena-se não só sua própria juventude, mas também a dos parceiros do Mercosul e dos vizinhos amazônicos, com anfetaminas made in Brazil.

Quem pensa que o Brasil é só país de trânsito e importador de drogas ilícitas está enganado.

Segundo maior consumidor mundial de drogas, perdendo apenas para os Estados Unidos da América, esta nação tão ultrajada pela corrupção é um pouco de tudo no mundo das drogas..5

O Chile ocupa o primeiro lugar mundial no consumo de anoréxicos, drogas do tipo das anfetaminas inibidoras do apetite, seguido pela Argentina. Em terceiro lugar os Estados Unidos da América e em quarto, o Brasil.

O sistema de distribuição de anfetaminas pelas máfias e cartéis tem pontes diretas entre Nova York, Amsterdã, Frankfurt, Paris, Madri e cidades no Mercosul. É pelo Paraguai que chegou ao Brasil a maior novidade do final do ano de 1998 no campo das drogas. Trata-se do Liquid Ecstasy, o néctar do diabo, disputadíssimo no ambiente da música tecno. Na Alemanha, esse novo produto veio dos Estados Unidos da América, passando antes pela Suécia, Reino Unido e Itália.6

A teia do narcotráfico nos Estados Unidos da América e na Rússia e suas ramificações externas são seguramente as mais sofisticadas. Discretas, as cabeças dos cartéis nos Estados Unidos da América comandam com grande profissionalismo a contravenção no Mercosul. Possuem alto nível de escolaridade, constituem empresas, sobretudo em atividades de exportação nos grandes centros urbanos. Internamente, a inteligência das máfias russas ocupadas com tráfico de armas e drogas no Brasil está ramificada, mas age com destaque em Buenos Aires, São Paulo e Manaus, onde localizam-se importantes troncos de conexão com as máfias américo-colombianas, estabelecidas notadamente na Palermo continental que é a cidade de Miami. Nesta cidade a presença do dinheiro angariado pelo narcotráfico e pela corrupção no Brasil é tão monumental que a crise cambial brasileira de janeiro de 1999 refletiu violentamente no setor de construção e de vendas de apartamentos de Miami. Um detalhe: caíram enormemente apenas as vendas de imóveis de um ou dois quartos. O comércio imobiliário de alto luxo não foi afetado. Como é sabido, o entra e sai dos capitais especulativos deixa a nação a mercê da agiotagem organizada, na maioria das vezes, perpetrada por brasileiros. Tal realidade obriga a conclusão do atrelamento da generalizada corrupção nacional também aos negócios do narcotráfico.

A tecnologia na área química para fabricação de drogas sintéticas em países do Mercosul pode ter sido repassada por máfias russas com apoio de técnicos desempregados da Polônia, Hungria e da antiga República Democrática da Alemanha. Estima-se que, pelas mãos das máfias das drogas sintéticas seja igualmente contínuo o fluxo de cocaína e heroína. Com ele atuam as máfias da Europa, do Oriente Médio e da Ásia, cujos representantes, como no passado, concentraram-se particularmente na cidade de São Paulo, de Lima e Ciudad del Este no Paraguai. Aí estabelecem-se os fundamentais elos com os grandes grupos de contrabando localizados na província argentina de Missões, em Mar del Plata, Montevidéu, e nas cidades fronteiriças com o Paraguai, Bolívia e Peru.7

A polícia conhece os nomes de grupos e bandos organizados de contrabandistas-traficantes que atuam no Mercosul, mas tem dificuldades de atuar, principalmente se pretender agir conforme mandam as leis em vigor. A facilidade com que bandidos cruzam as fronteiras é inversamente proporcional à dificuldades antepostas às forças policiais e militares, proibidas de agir fora das fronteiras dos seus respectivos países. A polícia, tanto de um como de outro país, está rigorosamente proibida de agir fora de seu território.

Os resultados e efeitos da atual política de combate ao narcotráfico no Mercosul, quando comparados ao incremento da violência que trazem consigo os entorpecentes, podem ser avaliados senão como nulos, extremamente modestos. Nos últimos anos, os níveis de apreensão de drogas não acompanham o ritmo de aumento do consumo. O que assusta é a facilidade da obtenção no mercado varejista de drogas, seja no Brasil, na Argentina ou no Uruguai. Isso significa, como mencionado anteriormente, que, em grande medida, os esforços da repressão não estão produzindo seus frutos na contenção da oferta. A fartura de drogas é tanta e tamanha, o narcotráfico anda tão onipresente entre a gente que até parece ser o Brasil o país da total legalização e descriminalização das drogas. Face a tamanho descontrole, com muita ironia é hora da sociedade exigir do Estado a tão sonhada criminalização das drogas, excluindo o cigarro e o álcool. Do jeito que está é que as coisas não podem ficar.

A desarmonização das legislações

O tráfico aumenta rapidamente e o volume da droga confiscada corresponde a aproximadamente 1% do volume traficado, ao contrário das estatísticas oficiais que elevam tal valor a cerca de 10%.

Apesar da gritante falta da aplicação das leis nacionais e das medidas propostas nos tratados internacionais de combate às drogas, os acordos ratificados pelos países do Mercosul na luta contra as substâncias entorpecentes, de maneira direta ou indireta, mostram brechas abertas nos modelos dos processos decisórios, ao não conseguir entrar a fundo na questão da harmonização de políticas internas de combate à produção e ao tráfico ilícito. A dinâmica dos modelos interativos é falha porque reflete demasiamente vaidades políticas e egoísmos domésticos. No Mercosul não existe nem mesmo políticas públicas comuns de prevenção e reabilitação de farmacodependentes. As questões da desarmonização das legislações e da jurisprudência são ainda insuficientemente estudadas no âmbito do Mercosul. Tenta-se padronizar rotinas e comportamentos jurídicos, porém tudo anda devagar demais.

Os acordos de cooperação mútua para a redução de demanda, prevenção do uso indevido e combate à produção e ao tráfico ilícito de drogas, se não dão certo, pode-se culpar tudo, menos a falta de dinheiro. Como tudo no subcontinente, o maior problema é o uso que se faz das verbas e não necessariamente a quantidade delas. Por exemplo, atividades burocráticas consomem enorme número de funcionários com pouca produtividade e bons salários, ao mesmo tempo que faltam professores dando aulas, médicos em hospitais e policiais nas ruas. Idem para as áreas de fronteira. Brasília, por exemplo, está abarrotada de generais, delegados federais, ao mesmo tempo em que vastas áreas de nossas fronteiras encontram-se em mãos de poucos agentes recém-contratados, ou de tenentes recém-formados.

O narcotráfico prospera velozmente nos países do Mercosul, onde a cocaína agora é consumida com outras drogas. Evidências sobre tratamento de viciados em drogas sugerem a presença de heroína no Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai. O comércio dessa droga, apenas em 1998 começou a ser objeto de específica análise por parte da Polícia Federal no Brasil. Naquele ano foram apreendidos 950 gramas de heroína.8 O que chama a atenção é o crescimento dos viciados. O aumento do seu número sugere tendência do incremento do seu tráfico, ainda que em pequenas quantidades, isto é, a varejo. Ao contrário do que geralmente se supõe, a heroína consumida no Mercosul não chega exclusivamente da Ásia. Guatemala, México e Colômbia são fornecedores dessa droga para todos os países do referido bloco econômico.

Hoje, muitos portos das Américas são vistoriados pela DEA, o que dificulta a entrada e saída de precursores químicos para fabricação da pasta base. Lamentavelmente esta vigilância não tem diminuído o contrabando de armas, ouro, pedras preciosas, café e soja. Os sacoleiros brasileiros pouco a pouco substituem Ciudad del Este por Miami, hoje o grande centro da contravenção continental.

Aqui na América do Sul, por exemplo, a remuneração do transporte da droga que chega da Bolívia passando pelo Mato Grosso do Sul, ou pelo estado de Rondônia, é acertada por quantidades de droga, sem a moderna sofisticação do narcotráfico e das máfias com base de comando em Miami.

Apenas pelo ar, os serviços de informação da DEA observaram, em 1999, que entre Paraguai, Brasil e Argentina, a média era de aproximadamente quase uma centena de vôos irregulares por dia, ou seja mais que o dobro dos vôos irregulares detectados pela FAB em 1995. Semi-abandonados, dezenas de postos de fronteira são escolas de prática do suborno. Os altos salários pagos no Brasil aos funcionários da Receita Federal não tem impedido tal prática.

Os bons exemplos de integração no Mercosul precisam ainda ser multiplicados. Só assim o cidadão comum sentirá os benefícios da integração regional. Enquanto isso não acontece, novas bases do narcotráfico erguem-se entre Argentina e Chile e entre Paraguai e Bolívia. Elas reeditarão ali, em maior magnitude, as estratégias de importação e exportação de drogas e produtos químicos controlados, porque, em termos geopolíticos, a nova localização dessas bases é consideravelmente melhor e mais segura para o crime organizado do que as existentes em Ciudad del Este no Paraguai, expostas demais ao público.

Dos países do Mercosul, o Brasil tem sido o preferido pelos africanos que não atuam apenas como "mulas" no narcotráfico internacional. Gabão, Togo, Senegal, Benin, Congo, Nigéria e Quênia são exportadores da cannabis. Nos dois últimos países, plantações de papoula para produção da heroína são realidade. A cannabis africana não penetrou no Brasil por causa da concorrência das plantações nordestinas no vale do Rio São Francisco que velozmente adentram-se pelos sertões com até três colheitas anuais. No Sul, a maconha paraguaia tampouco admite concorrência: sua qualidade satisfaz e seus usuários tem a garantia da fartura do produto.

Os latifúndios nas fronteiras do Brasil com o Paraguai e Uruguai são usados ocasionalmente como ponto de estocagem, com ou sem a aquiescência dos seus donos ou moradores. Se houver resistência por parte de alguém, o fim quase sempre é a morte.

O contrabando formiga: a origem dos sacoleiros

A trilogia contrabando de armas, de produtos químicos controlados e de drogas beneficia-se mais da indolência dos serviços de segurança do que da globalização e do processo de integração propriamente ditos. A tolerância do governo brasileiro em relação aos "sacoleiros" e contrabandistas de produtos eletrônicos que chegam de Miami ou do Paraguai é mais antiga do que se pensa.

A tradição da contravenção nas fronteiras com o Brasil está completando quase meio século de existência. Na época de Natal e na Semana Santa, o volume de "turistas" costuma ser tão intenso que impede qualquer controle efetivo.

A região do Salto de Guaíra, nas beiras do grande lago da hidroelétrica de Itaipu, abriga portos fluviais e campos de pouso que abastecem laboratórios clandestinos, alguns móveis. Acredita-se que, nesses locais, a pasta base proveniente da Bolívia seja transformado em cocaína. O comércio de carros e de caminhões roubados, assim como o contrabando de soja e café, quando não usados para esconder a cocaína, ajudam o narcotráfico com sua infra-estrutura logística e humana no quadrilátero formado por Paraguai, Brasil, Argentina e Uruguai. Nesse espaço do Mercosul, o sucesso da contravenção é quase total.

Desde 1960, o Encarregado de Negócios da Embaixada do Brasil em Assunção, alertava profeticamente a Secretaria de Estado das Relações Exteriores para a "existência de um ponto de fricção na fronteira paraguaio-brasileira que se transformaria com o tempo em um sério problema para os dois países".9

O alerta referia-se às atividades que a "Foreign Markets Trading Corporation" desenvolvia na área de Puerto Presidente Stroessner - Foz do Iguaçu, com base na zona franca que lhe foi concedida pelo governo paraguaio, por meio de um convênio firmado em 26 de fevereiro de 1960. O mesmo texto denuncia ligações da "Foreign Markets" com o grupo brasileiro da "Tupi-Guarani S.A." e sua alegada influência sobre certos funcionários estaduais de Foz do Iguaçu.

Com base nos depoimentos colhidos em Assunção e no alto Paraná, a Embaixada não hesitava, e com razão, em afirmar que a zona franca de Puerto Strossner já era, em 1961, "um centro de contrabando em larga escala para o Brasil. Que esse comércio ilegal se processava com o conhecimento das autoridades fronteiriças paraguaias e conta, de outra parte, com a cumplicidade de indivíduos residentes no território nacional".10

Drogas atraem drogas: no início, como acabou-se de mencionar, foram "inocentes" substâncias como álcool e nicotina despejadas dos Estados Unidos sobre nossas cabeças. Hoje, é de lá que saem e entram grandes quantidades de químicos para refinar drogas como a cocaína e heroína, que são contrabandeadas, do Brasil para a Europa.

A proximidade da região com a maravilha das Sete Quedas, agora submersa no grande lago da hidroelétrica de Itaipu, mais o esplendor da natureza das Cataratas do Iguaçu, transformaram esta área de fronteira entre a Argentina, Brasil e Paraguai em um importantíssimo pólo de atração turística de prestígio internacional.

Disso soube aproveitar-se com maestria a "Foreign Markets Trading Corporation". Turistas pouco a pouco envolveram-se em contrabando formiga de bebidas alcoólicas, cigarros e roupas, transformando-se posteriormente em ondas humanas conhecidas como "sacoleiros". Depois, o contrabando trouxe eletrodomésticos, produtos eletrônicos, armas, químicos controlados, sintéticos e finalmente as drogas pesadas, com incalculáveis perdas humanas e vultosos prejuízos para a indústria e para o comércio nacionais.

Igualmente, o Paraguai nada lucrou, pagando caríssimo por sua conivência com o crime. Em vez de industrializar-se, transformou-se em empório subdesenvolvido de quinquilharias descartáveis. Seus cidadãos normalmente são balconistas, "laranjas" e carregadores de malas dos comerciantes chineses, libaneses e coreanos lá instalados como patrões. Até os Estados Unidos da América perderam. É indesmentível o envenenamento de sua juventude com drogas em seu território, procedentes também dessa região, onde o contrabando nipônico, coreano e chinês soube destronar o monopólio dos produtos made in USA.

A falta de vontade política

Um ilícito abre caminho para outro. O contrabando nessa região passou rasteira em todas as autoridades dos Estados Nacionais envolvidas, abriu caminho para o narcotráfico e, finalmente, o feitiço virou contra o feiticeiro! Eis aí, a gênese dos sacoleiros no Brasil.

O processo de integração fomentado pelo Mercosul, promovendo a intensificação da circulação livre de bens através das fronteiras entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, facilitou, sem dúvida, a expansão do narcotráfico. Todavia, não se pode esquecer que os narcodólares têm mais idade que o Mercosul. É essencial recordar que o tráfico de drogas sempre fez parte do processo das relações econômicas internacionais. Daí ser impossível a narcogeografia regional deixar de beneficiar-se das vantagens das crises que esporadicamente assolam o subcontinente e também do processo de globalização.

O narcotráfico no Mercosul tem seu arsenal bélico procedente, em sua maior parte, do Brasil, dos Estados Unidos, de Israel e da Alemanha. Seu fim depende de vontade política dos fabricantes de armas brasileiros, norte-americanos e europeus. Seus pontos de embarque estão na Flórida, na Califórnia, em Rostock, em Hamburgo, em Roterdã, em Santos e em Marselha, entre outros. A entrada mais conhecida é pela fronteira Brasil-Paraguai, todavia existem outras como a de Ushuaia na Argentina e também no Uruguai. Entendimentos oficiais entre Brasil e Estados Unidos restringindo a exportação de armas não diminuiu até agora esse mercado da morte. Armas em abundância continuam chegando como sempre. Relatório sigiloso enviado pelo governo brasileiro ao governo dos Estados Unidos da América lista 1.29611 armas made in USA apreendidas no Brasil. A CIA, a DEA e a Polícia Federal do Brasil têm como chegar aos contrabandistas de armas brasileiras e norte-americanas despejadas no Mercosul a partir dos números de série das armas e de seus compradores. E por que não o fazem?

O comércio legal de munições entre o Brasil e os Estados Unidos, pondo de lado as transações militares para o abastecimento das Forças Armadas, nunca foi expressivo. A cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero, situada ao lado da pequena cidade brasileira de Ponta Porã, além do comércio de armas, tem o das drogas e o dos produtos químicos. Salto de Guaíra, a poucos quilômetros de Guaíra e Novo Mundo, transformou-se em centro de distribuição e depósito de cocaína. Apesar disso, ínfimo contingente de policiais lá trabalham.

Na cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero, lojas vendem armas sofisticadas a quem quer que seja. Recebem encomendas por telefone e entregam os pedidos do lado brasileiro. Grande parte chega dos Estados Unidos da América e Rio Grande do Sul no próprio Brasil, mas, tanto as autoridades norte-americanas quanto as brasileiras, não prendem os compradores de armas, mesmo sabendo que a maior parte das armas vendidas termina a serviço da violência do narcotráfico.

Na região da fronteira Brasil-Paraguai-Argentina, atua a máfia libanesa, formada em sua grande maioria por cristãos maronitas residentes em São Paulo, Buenos Aires, Curitiba e Foz do Iguaçu.

Os produtos químicos controlados chegam até mesmo da Ásia, camuflados com artigos destinados a lojas de produtos chineses, oriundos de Formosa geralmente para o Paraguai, único país do subcontinente que não mantém relações diplomáticas com a República Popular da China.

De acordo com o censo de 1991, vivem 4.882 chineses no Brasil. No Estado de São Paulo, membros da máfia japonesa Yakuza misturam-se com brasileiros de origem nipônica. Segundo o mesmo censo, 65.142 japoneses estão no país. Em São Paulo está a maior concentração de japoneses no mundo depois do Japão. Somados os 9.780 libaneses legalmente registrados aos descendentes dos que aqui aportaram no começo do século, o Brasil conta com cidadãos de sangue libanês em número maior que o existente no próprio Líbano. Os coreanos oficialmente somam 4.365 almas.12 A causa da visível presença de estrangeiros não latinos nas cidades de fronteira com Argentina, Brasil e Paraguai precisa ser cuidadosamente estudada.

As armas vendidas no Paraguai com destino ao Brasil, aproximadamente 70% delas são fabricadas no Rio Grande do Sul. Não são apenas "Mossberg" norte-americanos ou metralhadoras "Ingram" que transitam no comércio em mãos de negociantes de várias nacionalidades. A Taurus fabrica armas exportadas que depois entram de novo aqui, provando que este comércio sempre anda de mãos dadas com o narcotráfico. Assim, não é só o Paraguai a Miami pobre do subcontinente: em muitos lugares da Argentina, do Uruguai e do Brasil encontram-se autênticos supermercados de armas misturadas com produtos químicos controlados e de produtos ilícitos à disposição de quem conhece o assunto e tem dinheiro para pagar.

Suspeita-se de que as sofisticadas máfias russas atuem com máfias judias, existentes principalmente em Nova York e Berlim, promovendo o contrabando de pedras preciosas, drogas e armas entre as três Américas e Europa, com ponto de apoio em Buenos Aires e em Montevidéu.

A crise econômica na ex-União Soviética fez com que 140 mil russos de origem alemã migrassem para Berlim nos últimos anos. Quarenta mil deles são de origem judaica. A ação da máfia russa, infiltrada em ambos os grupos pode explicar o aumento de armas made in Israel e o destino das pedras preciosas que vão parar nas mãos de comerciantes judeus, seja em Amsterdã, em Frankfurt ou em Nova York. Armas alemãs contrabandeadas têm sido vendidas aos narcotraficantes principalmente em áreas de fronteira. Interagindo na economia, nas finanças e na política ele promove por meio da corrupção um monumental processo de integração.

O mundo dos ilícitos desconhece fronteiras: aproveita e acompanha a vitalidade e a agilidade do processo de globalização neoliberal, menospreza barreiras étnicas e nunca professa credo por ideologias ou religiões. Ridiculariza conceitos de segurança nacional e faz do princípio da soberania página definitivamente virada da história.

Bibliografia

1. CANO, Ignacio. Instituto Superior de Estudos da Religião (ISER). Rio de Janeiro, 1999.

2. Der Tagesspiegel, Nr. 16372/Sonntag, Berlin, 21.06.98.

3. Estatísticas da Divisão de Repressão a Entorpecentes. Departamento de Polícia Federal. Brasília.

4. Gazeta Mercantil Latino-Americana, 19 a 25 de outubro de 1998, p.8.

5. GEFFRAY, Christian. " Efeitos Sociais, Econômicos e políticos da Penetração do Narcotráfico na Amazônia Brasileira". Relatório de Atividades nº 2. Fevereiro de 1996, ORSTOM/CNPq.

6. Globo. 03.02.99

7. IBGE: Censo 1991

8. Pereira, Carlos S. Gomes e Franco, Afonso Arinos de Mello. Ofício Secreto, Assunção, 7 de fevereiro de 1961, Arquivo Histórico Diplomático de Brasília, Caixa 04 Carlos S. Gomes Pereira e Afonso Arinos de Mello Franco. Ofício Secreto, Assunção, 7 de fevereiro de 1961, Arquivo Histórico Diplomático de Brasília, Caixa 04.

9. PROCÓPIO, Argemiro. O Brasil no mundo das drogas. Petrópolis, Vozes, 1999.

10. Sumário Mineral. Departamento Nacional de Produção Mineral. Ministério das Minas e Energia. Brasília, 1994, p. 73.

11. Texto informativo da 1ª Reunião do Sistema Nacional Antidrogas. Presidência da República, Casa Militar. Secretaria Nacional Antidrogas.

1 Gazeta Mercantil Latino-Americana, 19 a 25 de outubro de 1998, p.8.

2 CANO, Ignacio. Instituto Superior de Estudos da Religião (ISER). Rio de Janeiro, 1999.

3 Texto informativo da 1ª Reunião do Sistema Nacional Antidrogas. Presidência da República, Casa Militar. Secretaria Nacional Antidrogas.

4 Sumário Mineral. Departamento Nacional de Produção Mineral. Ministério das Minas e Energia. Brasília, 1994, p. 73.

5 PROCÓPIO, Argemiro. O Brasil no mundo das drogas. Petrópolis, Vozes, 1999.

6 Der Tagesspiegel, Nr. 16372/Sonntag, Berlin, 21.06.98.

7 Ver: GEFFRAY, Christian. " Efeitos Sociais, Econômicos e políticos da Penetração do Narcotráfico na Amazônia Brasileira". Relatório de Atividades nº 2. Fevereiro de 1996, ORSTOM/CNPq.

8 Estatísticas da Divisão de Repressão a Entorpecentes. Departamento de Polícia Federal. Brasília.

9 Carlos S. Gomes Pereira e Afonso Arinos de Mello Franco. Ofício Secreto, Assunção, 7 de fevereiro de 1961, Arquivo Histórico Diplomático de Brasília, Caixa 04.

10 Idem, ibid.

11 O Globo. 03.02.99.

12 IBGE: Censo 1991.